A ética do/a escutador/a. –

– Encontros intoleráveis ou a ética do/a escutador/a. –

No contexto “necropolítico” não intervir com/para uma vida em risco é quase que automaticamente permitir que sua morte aconteça.

O que quero dizer é que de algum modo a posição de “escutador/a”, para ser exercida em sua “plenitude”, deve ter como método (modo de fazer) a presença. Escuta-se com todo(s) o(s) corpo(s) em um acordo desarranjado de envolvimento. Mesmo assim: perguntar não basta. 


Não pode ser que seja normal não se importar com “o-que-está-aí”.

Exercer o direito a vida, ou quando se toma isso como posição, exige um comprometimento com a existência de um(a)-outro(a) ( empatia, recuo de privilégios…).

Um “encontro intolerável” é aquele em que não temos mais total controle sobre nosso envolvimento. É quando não podemos passar por eles (os encontros) sem nos re-fazermos. Esse tipo de encontro impede que vejamos o mundo da mesma forma que antes.
Ao seguir como se nada tivesse acontecido estaremos, automaticamente, contribuindo para o extermínio desse alguém.

Quem vemos, nos olha. E o que estamos fazendo com isso?

Referências:
DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. 2a ed. São Paulo: Editora 34, 2010.
MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo, sp: n-1 edições, 2018.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012c.

MANIFESTO VAGALUME


Texto publicado originalmente na dissertação: “Olhares (im)possiveis : desenvolvimento e aplicação de metodologia para a escuta do indizível com crianças da periferia de Ouro Preto ” Disponível emhttps://www.repositorio.ufop.br/handle/123456789/9911

Nota introdutória 

Para concluir essa pesquisa, optei inicialmente por realizar uma instalação onde o texto a seguir seria apresentado de forma inédita aos presentes. A intenção dessa escolha se deu, pois, durante a realização deste trabalho me questionei e investiguei sobre os seguintes elementos: a necessidade de explosão da tela formal e única (no caso dos vídeos), a potência do encontro enquanto ritual (no caso dos encontros com as crianças), a potência da voz em relação à escrita (no caso da escuta) e a necessidade do corpo para que este trabalho pudesse se realizar (meu corpo que escreve, mas que se inscreve nos contextos, que vivencia o cotidiano, que performa outros-eus para dialogar com as crianças). Infelizmente, o ineditismo dessa leitura não foi possível. 

A intenção deste texto é ultrapassar as disciplinas particulares, trazendo para o centro a apreensão mais global de um contexto de pesquisa. Acreditar no poder da palavra (a oralidade) é re-historicizar, re-espacializar a questão: por isso, optei por produzir e ler um manifesto. Este texto pode ser pensado como uma confidência, com a nostalgia de uma liberdade que é própria de uma infância (quase) perdida, de uma história (quase) passada. A voz seria um instrumento importante, pois, quando escutada – mesmo se fixada nas mídias -, quebra a hegemonia da escrita. E mesmo que de certa forma perca sua corporeidade, o casamento desse elemento (voz, áudio) com a imagem (vídeo) pode também resgatar corporeidades-experiências-outras. A voz viva, nesse caso, tem a necessidade de tomar a palavra, quem sabe: de gritar. A performance pode ser pensada como recepção através dos elementos que ela apresenta para a percepção do sensorial, provocando o engajamento do corpo. 

No entanto [o corpo], é ele que eu sinto reagir, ao contato saboroso dos textos que amo; ele que vibra em mim, uma presença que chega à opressão. O corpo é a materialização daquilo que me é próprio, realidade vivida e que determina minha relação com o mundo. Dotado de uma significação incomparável, ele existe à imagem de meu ser: é ele que eu vivo, possuo e sou, para o melhor e para o pior. Conjunto de tecidos e órgãos, suporte da vida psíquica, sofrendo também as pressões do social, do institucional, do jurídico, os quais, sem dúvida, pervertem nele seu impulso primeiro. Eu me esforço menos para aprendê-lo do que para escutá-lo, no nível do texto, da percepção cotidiana, ao som dos seus apetites, de suas penas e alegrias: contração e descontração dos músculos; tensões e relaxamentos internos, sensações de vazio, de pleno, de turgescência, mas também um ardor ou sua queda, o sentimento de uma ameaça ou ao contrário, de segurança íntima, abertura ou dobra afetiva, o paridade ou transparência, alegria ou pena provindas de uma difusa representação de si próprio (ZUMTHOR, 2014, p. 27-28).

O corpo é o lugar do sintoma, é a materialização do que nos é próprio. E minha hipótese é a de que só haverá o testemunho quando houver o engajamento dele. 

Manifesto Vagalume

Me escute. Me escute bem. Esses texto não é um grito, ainda que seja um manifesto. O que escrevo aqui é um convite, um pedido. Uma reflexão propositiva após 24 meses de pesquisa. Mais que isso: escrevo aqui após 12 meses de encontro com crianças, com a infância, na periferia e da periferia. Gostaria que esse texto fosse escutado, e não lido. Mas, infelizmente, as regras e normas de uma investigação científica não me permitem fazer assim. Faço mais um pedido: siga lendo esse texto em voz alta. 

É necessário entender a arte como uma forma de estar no mundo, ver o mundo, pensar o mundo e, principalmente, se relacionar com o mundo. Essa ação, muitas vezes, não se dá somente nos terrenos da objetividade e da racionalidade, mesmo nas obras de arte no contexto da reprodutibilidade técnica. O que quero dizer é que o trabalho com a arte na escola pode ser uma atividade realizada com emoção, ou com a finalidade de provocar emoções. Resgatar emoções. 

Optando pelo questionamento através da confiança. “Confiemos na criança que chora (e talvez na criança que sobrevive em mim, já adulto, quando sinto vontade de chorar)”. Afinal, “quem se emociona diante dos outros não merece nosso desprezo”. Expor fraquezas, é expor também seu “não poder, sua impotência, sua impossibilidade de manter as aparências”. Quem opta pela emoção se abstém de negar o que sente, se apresenta com coragem para negar “o fazer de conta”. Geralmente, as crianças não escondem o que sente. Expor a emoção, então, pode ser mostrar também o seu (im)possível. E há muita coragem no ato de mostrar a emoção. A emoção age sobre nós, mas também está em nós. Ela está em mim (nós) e fora de mim (nós). “É um movimento afetivo que nos ‘possui’ mas que nós não ‘possuímos’ por inteiro, uma vez que ele é em grande parte desconhecido para nós”. A emoção é o indizível.

Esse resgate só será possível através da escuta e a escuta é uma tarefa difícil. É preciso sensibilidade, disposição e paciência. Vivemos em um mundo onde muito se fala e pouco se escuta, bem sabemos. Mas falo aqui de outra escuta: a escuta dialógica, não somente a escuta de um discurso. Escutar, nesse caso, exigirá um movimento anterior: co-criar as possibilidades para que as crianças possam falar. 

O que proponho é uma volta à infância, um afastamento da racionalidade da vida adulta para um mergulho nessa infância, nesse “algo que já foi”. Mas que como a poesia pode sempre voltar. Como as palavras que não dizemos, como os pensamentos que pensamos e não verbalizamos. A infância pode ser isso: algo que passou, mas exige seu constante retorno. 

É um trabalho que nos move da pergunta “o que fazer de novo” para “o que fazer com o novo?” A volta, nesse caso, remonta ao passado com ares de novidade. Ela é sempre inédita.

[…] As emoções passam por gestos que fazemos sem nos dar conta de que vêm de muito longe no tempo. Esses gestos são como fósseis em movimento. Eles têm uma história muito longa – e muito inconsciente. Eles sobrevivem em nós, ainda que sejamos incapazes de observá-los em nós mesmos (DIDI-HUBERMAN, 2016, p. 32).

Se as emoções são movimentos, podemos entender que são também transformações dos/das que se emocionam. 

Tranformar-se é passar de um estado a outro: continuamos firmes na nossa ideia de que a emoção não pode ser definida como um estado de pura passividade. […] se não podemos fazer política efetiva apenas com sentimentos, tampouco podemos fazer boa política desqualificando nossas emoções, isto é, as emoções de toda e qualquer pessoa, as emoções de todos em qualquer um.

Nessa travessia, quem sabe, produziremos imagens de imagens: imagens da infância perdida, imagens que remontam ao filme que nós mesmos gostaríamos de dirigir. O que proponho, então, é que no encontro com crianças na escola nos atentemos a inventar novas formas, estruturas, quebrar protocolos e não mais apenas nos queixarmos ou lamentarmos pelos processos, estruturas e questões que nos foram (e seguiram sendo) postas. Enfim: inventar novas armas para a luta por uma educação mais sensível. Uma experiência que permite passarmos de uma cultura do consumo para uma cultura da atividade. Nesse movimento, nos esbarraremos com práticas emancipatórias e também libertadoras, através da responsabilização. 

Se “em nossa vida cotidiana, convivemos com ficções, representações e formas que alimentam um imaginário coletivo cujos conteúdos são ditados pelo poder”, a arte pode nos apresentar “contra-imagens” que jogam ao nosso favor. A arte é “uma atividade que consiste em produzir relações com o mundo, em materializar de uma ou outra forma suas relações com o tempo e o espaço”. A arte nos possibilita “sonhar com os olhos abertos”. 

O que peço é um eterno movimento de reflexão nas fronteiras entre recepção e ação, para que possamos criar novas cartografias do saber. Novas possibilidades de conhecimento. Nessa nova cartografia, o papel da arte deve ser o de criação de espaços, portais que nos levem a novas questões, novas perguntas, novas sensações. Só o experimento será novo e verdadeiramente crítico, não mais orientado por uma arte de objetivos e produtos artísticos que se finalizam em si mesmos. 

Nessa lógica, é preciso que esses espaços não gerem mais fronteiras, mas que sejam as próprias fronteiras entre o que está em nós e o que está no outro. Mas uma fronteira sem estrangeiros, ou melhor: onde todos sejam estrangeiros dessa nova cartografia. Um espaço de verdadeira igualdade onde não existam coisas menos importantes a serem ditas, vividas, pensadas e sentidas. Uma fronteira onde a obra de arte não seja mais um “receptáculo da visão do artista”, mas o próprio movimento, vivo e incessante, de distribuição e autonomia que valoriza todos os processos: ideias, desenhos, fragmentos, pinturas, videos, quadros, conversas e trocas. Mas também o que não foi feito, o que não terminou, o inacabado. “Como uma obra conceitual cuja aparência física não importa muito, e que pode se materializar em qualquer lugar”

Nesses casos, o encontro é o que de fato importa. A arte se apresenta nele, independente de suporte, técnica e aparência física. O encontro não cabe nos formatos pré-estabelecidos e pode se materializar em qualquer momento, em qualquer lugar, em um mafuá. O vagalume é o encontro. 

A infância é esse lugar (não-lugar) que, mesmo quando se acessa “no depois”, exige um eterno movimento: o da volta. A infância é um mergulho num si mesmo. A infância é o próprio lampejo. 

Nota (in)conclusiva

“Fui uma criança velha. E agora, quem sabe, sou uma jovem criança.” 

Precisei realizar este trabalho para conseguir escrever essa frase, formular essa questão. Precisei falar e escutar sobre isso incessantemente, precisei levar esta dissertação para dentro da clínica psicanalítica (literalmente), a fim de entender e (re)visitar minha infância. 

Precisei da Olhares (im)possíveis para entender que eu podia chorar, que poderia sentir. Precisei registrar outras infâncias para resgatar a minha própria. Precisei do meu trabalho e do meu encontro com outras subjetividades (diversas e diferentes das minhas, obviamente) para superar a vivência de um corpo gordo na escola. Para entender que meu modo e freqüência de pensamento poderiam sim caber em algum lugar, precisei propor esse “mafuá”que deixa as crianças sem paz, para estar em paz com a minha infância. 

Precisei me encontrar com os autores para compreender de forma teórica o lampejo que sentia (e ainda sinto) dentro de mim quando realizo-vivencio-pratico o que acredito. Precisei, diversas e várias vezes, como criança, fazer birra, questionar, fazer escondido. Precisei de confrontos, muitas vezes estressantes, com uma equipe, para provar que “perder tempo”, como se perde quando é criança, valeria a pena. 

Resgatei minha infância em vários momentos durante este trabalho. E acredito que essa volta, esse retorno a esse lugar (re)desconhecido para mim, foi o que possibilitou um olhar mais sensível sobre a realidade das crianças que contribuíram para esta pesquisa. Precisei tantas vezes seguir instintos, muito mais que teorias, para que esse trabalho se realizasse como tal.